quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A cópia exaustiva, a falta de pesquisa e os Power Rangers

Pois é, um dos problemas mais comuns em alguns períodos de reencenação histórica.

Já viu fotos de um evento ou talvez já esteve em um em que você se sentiu em uma conferência dos Power Rangers? Deixa eu explicar melhor: imagine que você vê um grupo de reenactment onde todos recriam a mesma localidade e período. Normal, existem aos montes. Mas imagine que ao invés de buscar várias referências, o grupo inteiro pega tipo um pacote fechado e todo mundo calça sapatos do mesmo modelo, túnicas com o mesmo corte, gorros idênticos, espadas de um mesmo modelo dentro de uma mesma marca e por aí vai. As únicas mudanças são tamanho e cor. Pois é, parece que você está assistindo aos Power Rangers e todos tem pouquíssimas variações de um mesmo template.

No reenactment isso é comum.

Lembra do post sobre conjectural ou sobre o micro-recorte? Então, dá uma relida caso tenha esquecido. Ajuda.

Vamos lá, como alguns arqueólogos e historiadores da arte sugerem, era comum em vários períodos, especialmente os períodos Merovíngio e Carolíngio (ou Era das Migrações e Era Viking, se preferir o nome) que grupos de guerreiros afiliados a um mesmo chefe usassem "enfeites" similares, como broches, ponteiras e bocais de bainhas ou outros objetos. Mas isso demonstrava mais uma forma de se identificar através desses detalhes do que qualquer forma de padronização como um uniforme ou farda.

Além disso, é perfeitamente possível que um determinado senhor encomendasse esses objetos em um mesmo artesão ou oficina, o que explica o fato de que tecnicamente todos fossem parecidos. Diferente de hoje onde um artesão pode acessar todo um leque gigantesco de estilos, técnicas, materiais e afins, um artesão dos períodos citados acima provavelmente seguia uma única "escola" ou tradição que permitia que ele tivesse pouca liberdade para experimentar e mudar sua produção.

O que explica provavelmente o fato de alguns estilos de hilt de espadas, por exemplo, estarem confinados a regiões geográficas minúsculas, como as tipo G da tipologia Petersen terem uma maior incidência no sudeste da Noruega, ou as tipo S-Pyast em pontos específicos da Polônia. Isso nos dá exatamente o local e data onde o artesão atuava. Mesmo que haja uma ou outra fora desse núcleo, a gente sabe a origem.

Mas veja só, mesmo essas coisas não eram idênticas umas às outras. Não existem duas espadas iguais, mesmo que hajam espadas quase que gêmeas. Não existem duas túnicas iguais, mesmo que todas sigam mais ou mesmo as mesmas linhas gerais. Não existem dois sapatos iguais, mesmo que os contornos gerais sejam similares. Sabe por quê? Porque eram feitos à mão.

Nossa sociedade contemporânea tem uma dificuldade ENORME em entender o que é trabalho manual. Mesmo pessoas envolvidas com trabalhos manuais tem essa dificuldade. Porque nós somos treinados desde que nascemos a criar padrões, a replicar coisas até que quase não tenham variação e a exigir exatamente aquilo que se espera no produto final. E antes do século XVIII isso NÃO EXISTIA. Esse conceito de querer duas coisas idênticas é um conceito que só foi possível com a revolução industrial.

Quer prova? Olhe as famosas e famigeradas Ulfberhts. Nem a escrita é igual. "Ah, mas a Cawood e a Korsoygarden são idênticas". Não, não são. Elas são parecidas, com muitos elementos similares que provavelmente as colocam como filhas da mesma oficina, mas não são iguais. Elas tem ângulos visivelmente diferentes, elas tem detalhes diferentes. Até o tamanho muda em alguns centímetros. E alguns centímetros fazem muita diferença. Porque isso significa que elas não foram feitas para serem idênticas, como produtos em série, mesmo que tenham sido feitas para serem parecidas.

O mesmo acontece com guardas e pomos de algumas tipo K Petersen francas que possuem decoração e estilos similares, mas em nenhum momento se pretendem do mesmo tamanho.

Claro que é extremamente mais fácil chegar no costureiro ou sapateiro e falar "quero três túnicas assim". É como nosso mundo funciona hoje. Mas eu conheço muitos reenactors que fazem as próprias roupas, sapatos e outros objetos de uso cotidiano. Não tem problema ser um pouco conjectural de vez enquando. Mesmo porque, se for parar pra olhar, boa parte das coisas mais icônicas que temos tem uma grande base conjectural.

Algumas túnicas foram reconstruídas no puro chute, já que estavam danificadas de mais pra realmente servirem de testemunho de como eram. Espadas, elmos, facas... Muito do que temos são sombras remotas que permitem muita invenção em cima. Sabem do achado que teoricamente teria a palavra Alá escrita num alfabeto que só teria sido inventado séculos depois? Então, arqueólogos fazem aquilo o tempo todo. Mas às vezes ninguém se importa com a notícia e a "verdade" pega. Uma prova disso é que existe debate acadêmico sobre quase tudo o que se acha e que tem alguma importância. Se tem debate é porque existem duas teorias distintas, no mínimo, sobre cada achado.

E o que isso tudo tem a ver com copiar, não pesquisar e Power Rangers? Bom, se você pesquisa sobre túnicas o suficiente, até o suficiente pra estabelecer uma tipologia pra elas, você começa a pensar em tipos, não em achados específicos, a menos que o que você esteja fazendo seja uma réplica, aí é pano pra outro post.

Mas qual a vantagem de trabalhar com tipologias? De novo falando de espadas, que é a minha área de estudo, mas a analogia serve pra todo o resto. Se alguém me pede uma "Tipo M Petersen" eu tenho uma grande liberdade pra fazer algo desse tipo. Posso escolher um perfil de lâmina condizente com o hilt, posso pensar numa decoração de empunhadura e bainha condizente com o hilt, posso fazer um hilt que esteja dentro dos "parâmetros" pra uma tipo M que fiquem bons com o estilo geral da peça. Vai ser uma espada autêntica, perfeita pro período, mesmo que não seja uma réplica de nenhum achado específico. E o dono vai ter uma peça que é só dele, não vai ver outra exatamente igual por aí, mesmo que veja outra tipo M. Isso é historicamente correto.

Se o cliente pede uma espada "igual a de Lesja", que é uma "anomalia" classificada como tipo M por falta de coisa melhor, por assim dizer, é uma coisa interessante pra um recorte norueguês do século IX ou X, que sai da curva. Mas já pensou se ele pede 5 "pro grupo"? Basicamente seria como pensar em produção em massa de produtos iguais pra esse período de séculos IX e X.

E isso gera simplificações que são no mínimo ridículas. É como se chegasse "ah, eu tenho uma espada Lesja", dando a entender que existem várias espadas iguais em Lesja. É diferente de falar "Tenho uma Ingelrii", porque de fato existiam várias dessas, mesmo que todas com diferenças marcantes. Mas hoje temos "calça Hedeby", "Sapatos Jorvik", "elmo Vendel/Valsgarde", ou meu favorito, "espada Petersen" que não diz absolutamente nada.

Além de existirem mais calças do que apenas uma em Hedeby, vários pares de sapatos em York, vários elmos em Vendel e Valsgarde e pelo menos 30 tipos de espadas categorizados pelo Petersen, às vezes esses achados são tão fragmentados que fazer um trabalho e dizer que foi achado em um determinado lugar é abusar do bom senso. É como eu dizer que minhas calças são baseadas em um achado de Hedeby quando na verdade o achado original tem só os restos de uma coisa que poderia ser uma calça, uma cueca, uma meia ou qualquer coisa do gênero.

Aí por isso é importante estudar. Porque quando você olha como os cortes de, digamos, uma túnica era, você percebe que pode reconstruí-la de pelo menos três maneiras diferentes. E você vê proposições de outros arqueólogos além daquele que postou em um blog sobre como os vikings eram muçulmanos. E percebe que talvez aquela reconstrução que todo mundo do seu grupo usa nem seja a mais possível. Mas você compara com outros achados, com tipologias e você passa a ver o que faz sentido ou não. Lembrem-se que as peças de pernas e braços de Valsgarde foram assumidas como uma proteção de abdômem por algum tempo, até alguém sugerir que talvez a pessoa usando aquilo não conseguiria se mexer.

E daí talvez você possa usar uma determinada construção que ninguém sugere porque ninguém tentou reconstruir e que você vai e descobre que é mais confortável do que uma que algum arqueólogo propôs. E que talvez fosse a forma com que a roupa tenha sido feita. Ou simplesmente escolher uma equivalente de algum período e local próximo se você ver que é plausível. Embora isso exige estudo, coisa que a maioria não está disposta a fazer.

O que não rola é dar motivos pras piadas que os gringos fazem entre eles quando alguém aparece com alguma coisa muito maluca e sai dizendo que "é de Birka", mas um conjectural responsável é melhor do que ter vários clones multicoloridos.

Evite copiar o tempo todo, principalmente quando você percebe que seu grupo tem várias coisas iguais. Mesmo que seja um grupo inteiro com um recorte bem pequeno, por exemplo "Francos da primeira metade do século IX". Olhem a Bíblia de Morgan pro século XIII, por exemplo. Ela é fenomenal que até numa representação artística, com vários equipamentos do mesmo tipo, você repara em detalhes que diferenciam cada uma das adagas, espadas elmos e roupas numa mesma cena.

Não faça seu grupo ou um evento se tornar uma conferência de Rangers. A menos que seja um reenactment de algum período mais recente, claro. Mas falando da Era Viking, ela não era monótona como alguns gostam de pensar. Ela era rica e cheia de possibilidades. Não vamos cair na mesmice.

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