quarta-feira, 21 de junho de 2017

Equipamento pra isso, equipamento praquilo...

Bom, esse post é uma visão minha, mas sei que muitos artesãos e usuários concordam com essa opinião, então é mais pra terem uma certa base, não necessariamente levar como uma verdade absoluta e imutável. Mesmo porque as práticas que vou descrever aqui evoluem com o tempo e costumam mudar parâmetros de acordo com o que funciona melhor pros praticantes.

A questão principal aqui é sobre as diferenças ou similaridades de peças que são vistas em várias atividades e com diferenças enormes entre essas atividades, especialmente armas e armaduras. Afinal, se todas visam ser o mais fiel possível às originais, por que raios elas tem tantas especificações diferentes de acordo com o uso? Significa que uma atividade é mais "historicamente correta" que a outra? Ou que as pessoas não entenderam nada e customizaram as coisas de um jeito irreversível pra atender melhor suas exigências, ignorando a autenticidade?

Como a maioria dos leitores aqui sabem, sou artesão em tempo integral, especializado em artigos de ferro da Era Viking (ui! Pareceu sério agora), também sou reenactor e entusiasta de artes mariciais históricas européias (HEMAs) e estou entrando no mundo do buhurt. Pra que cazzo eu preciso dar o currículo depois de todo esse tempo do blog? Porque embora eu não seja o praticante quintessencial de cada uma dessas "brincadeiras", eu inevitavelmente convivo com cada meio o suficiente pra ter uma certa noção de como eles enxergam as coisas. E isso vale tanto pros dinossauros mais experientes no rolê quanto pros mais noobões. E todos tem pontos muito peculiares e antagônicos, mesmo que prum leigo pareça tudo a mesma joça.

O exemplo mais óbvio de arma, já que é a menina dos olhos de muita gente não poderia deixar de ser a espada. Vamos lá:

Imagine uma espada da Era Viking. Na média a gente tende a dizer que elas pesavam por volta de 1kg. Ou de 800g a 1,2kg. Mas veja bem, existem espadas desse período de 400 gramas. E outras de 1,9 quilos ( Como a C777 do Museu da Universidade de Oslo; uma reconstrução apropriada levaria pra 2kg, contando madeira do cabo e gume arrumado). Não são as "medianas", mas existem e são dignas de nota, se não por serem a regra, por serem a exceção.

Outro fator é alcance, tamanho, ponto de balanço, os pivots, o quanto a guarda pode ser longa, se tem um ou dois gumes e por aí vai.

Vamos supor, apenas supor, que houvesse uma categoria de buhurt ou duelos "pesados" com armas e armaduras dessa época. Num duelo, onde você precisa pontuar com golpes que fariam estrago, com quatro juízes olhando bem o que está acontecendo, uma arma de 2kg seria lerda de mais pra passar o escudo o tempo todo, mas com 1,02m poderia alcançar mais áreas desprotegidas. Uma de 400g não marcaria nenhum ponto "válido", isso se atingisse o alvo, tendo uns 50cm de comprimento.. Enquanto que num buhurt com várias pessoas, uma arma de 400g não seria nem sentida pelo alvo, enquanto uma de 2kg faria um belo estrago, mesmo que não mexesse tanto. E aí?

O esporte se desenvolve de forma autônoma às características de armas específicas e resolve "fechar o escopo" das armas do período. No caso a HMBIA, uma das grandes associações do esporte no mundo definiu esse ano de 2017 que espadas de uma mão devem ter entre 1300 e 1700 gramas e medir no total entre 72cm e 1m. Outra regra, essa já mais antiga, é que não valem estocadas, então basicamente ter uma ponta na arma não faz nenhum sentido.

O que isso faz? Você seleciona armas específicas do período pra entrarem nessa categoria e aí você otimiza ela pras suas necessidades. Você vai bater com os dois gumes? Então faça uma espada com um gume só. Você vai dar estocada? Então escolha um tipo de arma com um balanço mais adequado pra corte do que, por exemplo, uma espada de ponta. Você vai bater com força pra atingir uma armadura e não mirar em pontos específicos onde a armadura é mais frágil? Então aumente o peso e consequentemente a resistência da arma. Ela vai bater em ferro o tempo todo? Então escolha uma arma com um tratamento térmico que a deixe menos rígida. Não pode dar soco com a guarda? Então faz a guarda mais curta pra não ter risco. Ela não vai cortar? Então tire o fio. Etc, etc, etc...

Mas perceba que tudo isso pode ser escolhido dentro do leque de armas do período, sem a necessidade de invenção. Tirando, é claro, o tipo de aço usado e o fato de as armas serem cegas, mas isso também será dito aqui.

E se eu quisesse fazer uma reconstrução do combate com armas da Era Viking? Bom, suponha, SUPONHA que hoje de manhã encontraram uma pedra rúnica boladona numa ilha sueca com desenhos de posturas de luta e descrições. Pronto, viquens são oficialmente tema de HEMA! Aí você quer treinar aquilo lá. Você pega qualquer arma do período e treina. E daí você percebe que algumas se adaptam aos movimentos e posturas de um jeito melhor que as outras. Pois é, acontece o tempo todo, porque o Olaf (nome fictício), o cara que encomendou ou fez a tal pedra, talvez estivesse pensando "ei, eu tenho essa espada, vou fazer um guia de como usá-la". Ele não ia perder o tempo fazendo isso pra espada do Lars, o vizinho dele, que podia ser maior ou menor. Isso gera uma prática e você começa a usar apenas espadas parecidas com a do Olaf, porque a do Lars não ia funcionar.

Assim você tem armas nas HEMA. Não significa que quando Liechtenauer escreveu o tratado dele ele era universal e eterno. Se fosse os que vieram depois dele simplesmente não iam fazer mais nada além de copiar o estilo do anterior. Os sistemas de luta mudavam porque as armas do período também mudavam. Uma mudancinha aqui e ali na espada e pronto, a luta inteira tá diferente. Ou seja, você escolhe um leque, você foca nesse leque e você deixa o resto meio de fora porque se não a coisa perde a referência.

Por exemplo, se voltarmos a comparar a espada de meio metro e menos de meio quilo com a de quase um metro e quase dois quilos, se o objetivo é o toque, como em competições de HEMA esportivas, sem dúvidas mesmo sendo mais curta a levinha teria vantagens. Agora, se fosse "primeiro toque", a pesada talvez ficasse numa posição melhor simplesmente por ter quase meio metro de lâmina a mais.

O que você usa pra resolver o problema é bem simples: cria parâmetros. Não os mesmos da HMBIA pro HMB, porque você não quer golpes "que sejam letais" e você não está batendo num cara vestindo 30kg de armadura. Você faz a arma ligeiramente mais leve, tentando aproveitar o comprimeito e que seja mais segura.

Então como você faria pra treinar o imaginário tratado do mestre Olaf? Você pega uma lâmina que afunile mais na ponta, que seja mais longa, mais leve, com uma guarda um pouco maior pra segurança, uma espiga mais larga pra servir de contra-peso, uma ponta mais gordinha pra não perfurar o amiguinho, com uma parte mais flexível pra dobrar e voltar ao normal sem atravessar o amiguinho, dois gumes porque tudo o que vai volta, sem fio nesses gumes, por favor e a lista vai longe.

Olhando a espada do Olaf, você percebe que ela é igual (tirando o fato de ser cega, os materiais usados e a ponta) a algumas originais do período e você fala "minha espada é mais autêntica do que a do buhurt viking!". Mas não é. Porque nesse caso, ambas são autênticas, mas ambas são otimizadas pra função.

Bom, eu poderia fazer um parênteses pra falar de LARP e Swordplay/boffering ou soft combat. Só lembrando que por mais "não-espadas" que as espadas deles são, AINDA ASSIM se utilizam de originais em alguns casos e os transformam para uma atividade mais ou menos segura. Fazendo um paralelo é como usar Nerfs ou AEGs pra simular práticas com armas de fogo reais. A experiência e aparência mais real sem dúvidas vai estar no airsoft, mas ela AINDA não é uma arma real, mesmo que tenha incontáveis características que a deixem quase idêntica a uma real.

Chegamos ao reenactment, afinal de contas e deixei por último aqui por ser o tema original do blog. E também porque quando falamos de reenactment temos vários tipos de reenactment diferentes e isso deve ser visto com cuidado na hora de fazer uma análise das espadas usadas.

Num recriacionismo de combate, diferente da HEMA viquem do Olaf, você quer o plural, não o individual. E é curioso que daí você foca no individual pra isso. Eu gosto da espada de 2kg. Meu amigo da de 400g. Depois mais cinco membros do grupo gostam de espadas medianas. criamos regras simples de combate, batemos sem tanta força, mas com alguma, decidimos onde vale e onde não vale porque, "ei! tem gente sem camisa lutando!" e daí cada um se acostuma com uma arma ou com a outra. Não é um esporte. Não existe tanto o conceito de vantagem ou equivalência. Como você cria regras prum duelo de espadas quando só um lado efetivamente usa uma espada e o outro uma lança?

Vale tudo. Digo, vale o que é autêntico. Tanto a "espada Olaf" quanto a "espada buhurt viquem". E vale uma porção de outras espadas, desde que todas tenham paralelos reais. Maaaaaassssss...

Não são afiadas. Não são pontiaguas. Não precisam ser super resistentes ao impacto. Não precisam ser super flexíveis. Mas veja só, não é como se as do período fossem, afinal, ninguém quer estocar num inimigo numa luta até a morte e ver a espada envergando feito uma mola ao invés de atravessar a pessoa.

Ela cumpre a função, então tá bom.

E num recriacionismo mais visual ou técnico/tecnológico? A coisa muda. E muda dependendo do grau que você quer levar isso. Suponha que quero fazer um teste de corte de uma espada viking. "Será que a C777 decepa uma cabeça num corte limpo?"

Você vai e pega uma réplica da espada específica, ou faz uma peça conjectural baseada em diversas originais. Mas faz usando aços modernos. Você dá todo o tratamento térmico ideal e tudo o mais. Você pega gelatina balística e umas coisas duras como osso e tendões e monta seu crash test dummy (mmm mmm mmm mmm). E ela corta!

Isso significa que a danada e suas réplicas são fenomenais e decepam cabeças. Só que não.

O que você fez foi otimizar a lâmina pra uma perfeição, uma concepção de tudo de ideal que existisse na época. Mas você usou materiais diferentes, com propriedades diferentes. O resultado é diferente. Não que uma lâmina real não fosse capaz do feito, mas ele poderia dobrar, cegar com mais facilidade, quebrar de tão duro, amassar ao bater no osso e por aí vai.

Você vai lá depois e replica a C777 usando materiais de época e tudo o mais. E refaz o teste. Sucesso!
É, não. O que você sabe é que uma espada como aquela teria passado no teste, mas não saberá jamais se aquela espada teria. De qualquer forma, aí sim você vai ter uma espada que é o mais autêntica possível pro período, mas ela vai ser usada pra quê?

Uma função das espadas na época, além de mostrar poder, era ser usada contra outras pessoas (pra não dizer "cortar gente"). Se não bate em pessoas e não demonstra poder, meio que filosoficamente falando nem é espada. Mas a que foi usada num reenactment de combate, na HEMA do Olaf e no buhurt viquem pelo menos são usadas em lutas, ainda que lutas controladas. Mas é, claro, se você quer uma espada que realmente tenha todo o potencial de ser idêntica a uma original, você tem. Se rolar um cenário pós apocalíptico eu tenho certeza que ela vai fazer tudo que uma espada oldschool faria.

E por que não usar materiais autênticos em todas, pra que todas ficassem mais próximas? Porque você não tem certificado de garantia e muitas vezes você está lidando com a saúde e com o bolso das pessoas e tem gente que vira o bicho quando você ameaça qualquer um desses dois. Um aço de uma fornalha de redução medieval, além de ser extremamente mais caro de se produzir, pode quebrar num estoque. Imagine ele atravessando sua máscara de HEMA. O soviético Vladimir Viktorovitch Smirnov teria algo a dizer sobre isso, mas ele morreu na hora (e olha que era um aço moderno. E alemão).

No fim, você tem várias peças que focam em pontos da autenticidade diversos e que diferem muito entre si, mas possuem muito mais em comum do que parece. Exceto, claro, pelo fio, ponta e material, talvez eu pudesse usar uma espada de 1,3kg, de 95cm de comprimento, com uma lâmina mais rígida e com uma certa flexibilidade pra quase todas as tarefas citadas acima. Obviamente ela não cortaria, mas poderia ter um bom balanço, dar golpes fortes sem demorar pra tomar uma resposta e seria usada em combates mais ou menos reais.

O exemplo da espada aqui foi apenas um mais marcante, embora nem de longe o post seja sobre elas. A mesma lógica vale pra quase qualquer arma e também para armaduras. Tudo, claro, em maior ou menor grau.

Uma maça de seis flanges por exemplo, dentro das regras da HMBIA, poderia ser exatamente igual a uma reprodução fiel de uma original, uma usada para um reenactment ou uma usada para testes de impacto. Até o material nessa equação poderia ser o mesmo das originais, ainda que isso aumentasse o custo pra quem fosse comprar. A diferença seria, talvez, uma chanfrada maior nas quinas, que também não é algo impensável pra peças originais, já que o mesmo chanfro podia ajudar na penetração em armaduras. E ao contrário de armas afiadas, as armas cegas também podem ser mais fieis às dimensões e funções originais delas.

Já em armaduras a analogia com a espada é mais visível. Dependendo do quão severa for a atividade você precisa aumentar a espessura dos materiais, a qualidade dos mesmos e por aí vai. Enquanto que pra outras práticas você pode usar armaduras mais leves, mais finas, com materiais menos nobres, sem que uma seja necessariamente mais autêntica do que a outra.

Por exemplo um elmo para reenactment com 1mm ou 1,5mm estão de bom tamanho, já que geralmente as lutas não são tão violentas quanto um buhurt, que exige pelo menos 2mm para a cabeça, ainda que 2,5 e 3mm sejam de longe melhores. Algum é mais "historicamente correto" que o outro? De fato armaduras não eram tão grossas no passado, mas não por falta de capacidade. Existem peças de armaduras de justas que chegam a 5-6mm. Então fazer algo especificamente para competição é uma atitude historicamente correta, no fim das contas. E hoje o buhurt é um esporte, tal qual o era antigamente.

O fato mais importante é que todo reenactor, lutador de buhurt, artista marcial, entusiasta e artesão devem conhecer as peculiaridades da atividade que praticam. O que pode ser uma peça excelente para um grupo pode ser terrível pro outro, ainda que seja uma reprodução perfeita (com as adaptações devidas) de uma peça original. E o melhor de saber identificar é que você descobre até se aquela sua velha espada usada no reenactment do século XIV serve pra um Battle of the Nations, por que vai quê?

Não basta conhecer recorte, conhecer o período, conhecer as armas, tipologias, armaduras, formas, cores e nomes. É fundamental conhecer a atividade que você tem como hobby, profissão ou estilo de vida, pra não levar gato por lebre, mas também lebre por gato.