sábado, 5 de março de 2016

A autenticidade é a regra, o objetivo, a utopia, mas não pode virar impedimento

Boas!

Protelar pra escrever é uma arte na qual me considero mestre, mas hoje resolvi colocar no papel (ou simplesmente digitar) algumas ideias e "iluminações" que tive faz algumas semanas depois de uma conversa com um membro do grupo Haglaz, do Rio de Janeiro.

Basicamente a conversa foi sobre o "se ter todos os aparatos necessários para se fazer alguma coisa ou não" e isso me deixou com algumas coisas na cabeça e andei pensando se realmente faz sentido você manter um objetivo como desculpa para não fazer o que se gosta. Parece contraditório, mas vou explicando adiante.

Naturalmente não possuímos machados produzidos com as mesmas técnicas que no século VIII quando nascemos. A gente consegue esse tipo de coisa depois de um certo tempo, mas não é por isso que somos incapazes de cortar lenha com uma machadinha estilizada. E isso se aplica a tudo quando se começa a viver essa vida de recriação histórica.

O reenactment em si é uma prática que pode parecer cara pra quem está começando. E é, quando não se tem o devido preparo ou ajuda. E o brasileiro nunca foi o povo com o maior poder aquisitivo do planeta. Isso cria uma distância enorme entre o que se deseja fazer e o que se tem a viabilidade de fazer. Mas veja só, existem outros países com economia tão insegura quanto a nossa que avançam nessa cena. Por quê? Porque é mais importante dar um passo por dia do que sete a cada domingo. Não, não é a mesma coisa.

O recriacionista brasileiro é um pouco afobado. E é natural, já que é um meio novo que muitas vezes é a soma de tudo que o cara queria fazer. E existe um certo receio de "perder a onda" e deixar a chance de entrar pra esse mundinho passar. Pelo menos é algo que eu reparo nas pessoas que são "novas no rolê". Mas como disse no post anterior sobre ser dos 10% ou dos 90%, os 10% são estáveis, são pessoas que gostam disso e que sempre estarão ali mantendo a atividade em alta, mesmo que com um efetivo bem menor.

Essa afobação logo vira um desânimo, uma decepção. Porque entre o pessoal mais puritano existe uma lei maior de sine qua non em relação à autenticidade. E aqui eu amarro o texto até então: autenticidade é cara, sou nova ou novo no negócio e não tenho nada, meu dinheiro é curto, sou afobado e quero tudo, pessoal fodão olha feio pra minha batinha de algodão que nem de longe se parece com uma túnica de lã sou obrigado a me juntar com aqueles que fazem tudo errado mesmo porque querem e crio uma birra com o pessoal da autenticidade utópica, porque eles criaram uma comigo. Percebe o que estamos criando?

Cria-se uma rede de formação para noventaporcentos estimulada, financiada e desenvolvida pelos dezporcentistas que dizem lutar contra os mal reconstrucionistas. E é uma coisa meio cruel até, porque você cria barreiras tão grandes que depois de um tempo ficam intransponíveis. Aquela menina que chegou na festa com seu vestido de cetim toda empolgada e foi esculachada pela moça cheia de ouro e prata no pescoço vai gravar aquilo na cabeça, e vai ficar com medo e aversão daquela ostentação autêntica toda.

- Mas existem alternativas baratas e autênticas! - Alguém grita na multidão.
- Sim, existem.

Mas eis o grande problema com o ser humano: somos inclinados a querer aparecer. E falando em recriação histórica, todo mundo sabe que antigamente, em qualquer período, era a mesma coisa. Agora pensa você que pode pagar 100 reais num vestidinho bonitinho de princesa Disney e vai ser super aclamada entre seus amigos e parentes no Instagram com lentes de contato, cabelo arrumado, orelhinha de elfo e tudo o mais e de repente alguém te oferece, pelo mesmo valor, a grande e imperdível oportunidade de vestir um subvestido de linho cru, de andar descalça, sem maquiagem e cabelo bagunçado. E é o mesmo com a versão masculina da coisa: todo mundo quer ser o guerreiro típico de uma peça teatral de Henrique V ou Game of Thrones, mas ninguém quer parecer um mendigo, um pajem ou um camponês da Normandia do século XIV, por mais "acurado historicamente" que você consiga sem ter que gastar tanto.

Pois é. Mas você acha muito caro pagar 150 reais num par de sapatos de couro que só vai usar duas ou três vezes ao ano e que se pisar de mais em lama vai mofar, encolher ou rasgar. Como artesão eu digo, não é caro, não mesmo, mas eu tenho perfeita noção do poder aquisitivo do brasileiro médio. Pode não ser caro, mas é um valor que está fora do orçamento.

E sem o sapatinho de couro, as calças de lã 100% natural, a túnica de linho tingida com óxido de ferro numa grande panela em casa, seu kit de fazer fogo inspirado em achados arqueológicos (que você nunca vai usar, porque todo lugar que você for já vai ter uma fogueira acesa), sua espada que tem a mesma datação do resto da vestimenta, sua faca de acordo com a espada, mas que você vai ter que deixar na bainha, no ônibus, porque não pode entrar com "arma afiada" na festa e outros apetrechos devidamente catalogados por museus e livros, você não pode participar da patotinha. Certo? Em tese, mas na prática isso é erradíssimo.

Isso cria uma muralha para a prática do "bom reenactment". Ninguém vai gastar uma fortuna em seu primeiro mês de prática (supondo que tenha uma boa orientação, se não a fortuna quadriplica) sem nem saber o que é a prática em si. Pra chegar no terceiro mês e não querer mais. Ou ficar dependendo da vontade dos outros gastarem a mesma fortuna depois.

Então surge a alternativa que surgiu do membro do Haglaz que falei no começo do post: pratique direito, mesmo que não pareça direito. Como assim? Lá no Rio eles possuem espaço pra poder acampar e fazer outros tipos de atividade que são importantíssimos dentro do recriacionismo, sem incluir lutas ou feiras. Mas fazer uma tenda le lã grossa, ou linho de boa qualidade onde pode se chegar a gastar quase 40 metros de tecido costuma sair caro. Aí você fala "não vou fazer um acampamento temático até ter minha tenda de 2000 reais pronta" e você sabe que nunca vai ter, por mais que você queira. E você deixa de aproveitar as milhares de oportunidades de feriados prolongados sem chuva que vão aparecer na sua vida. Ou, você pode fazer como eles e levar a barraquinha de camping e deixar ela escondidinha enquanto você faz a vivência. Ou como eu mesmo resolvi fazer recentemente (depois da tal conversa), que decidi comprar algodão cru mesmo pra fazer uma tenda ao invés de esperar cair uma bolada na minha mão pra comprar um tecido mais apropriado. Quando cair a bolada, eu compro, mas não vou me privar de algo que eu gosto por um detalhe que é o tecido usado na tenda, que em boa parte dos casos só eu vou saber.

Entendem? É como dizer "não tenho uma calça apropriada, não irei participar das atividades do meu grupo por isso" e deixa pra fazer quando tiver a tal calça. Ou sapato. Ou um pedaço de sílex. Vira uma utopia, porque você não melhora em nada procrastinando a atividade, mas você acha que quando tiver aquela pedrinha bonita, tudo vai mudar. E não vai.

Eu passei a ser a favor de "substitutos temporários" e que durem o tempo que precisem durar. Quanto mais eu acampar com uma tenda de algodão, mais eu vou querer uma tenda de lã. Se não "eu não estou precisando mesmo, sabe-se lá quando vou acampar" e vai empurrando, sem viver aquilo que digo gostar tanto. E isso serve pra tudo.

É claro que existem limites, já que eu sou do tipo chatão da autenticidade que luta pra conseguir se manter nos 10% do post anterior. Uma pessoa que diz amar o reenactment e em um ano não consegue reservar dez reais por mês pra comprar sequer uma túnica, mas gasta metade desse valor comprando uma bata indiana, fica difícil, embora existam casos e casos. Ou alguém que diz em claro e bom som "ah, não vou pagar 800 mangos numa espada certinha e que funcione, porque não ligo. Só quero mesmo é me divertir pagando 500 numa toda errada e que talvez quebre que é mais barato", coisa que já passa do conceito da economia ou do pagar mais barato e vira descaso com uma prática inteira. Ou casos ainda mais esdrúchulos como preferir pagar 300 reais num par de botas completamente anacrônicas para usar em atividades recriacionistas ao invés de pagar metade desse valor em peças feitas exclusivamente pra isso e dizer que não comprou a mais barata porque "estava caro" e ainda por cima dizer depois que "não tenho dinheiro para uma túnica nova". Anedotas do reenactment BR. Esses serão sempre membros dos 90%.

Agora, pra fechar o texto voltando ao assunto central, é a questão do esforço que deve contar. Uma coisa é você estar satisfeito com um kit todo feito sem apego nenhum à autenticidade. Outra é você saber que possui erros em suas coisas, mas as usa enquanto não consegue alguma coisa melhor (e demonstra interesse em ter, de fato, algo melhor). No meu grupo, pelo menos, eu pediria pra pessoa esconder os erros pra não aparecerem na foto, mas isso não significa cortar a pessoa completamente do círculo, a menos que virasse a primeira opção, de alguém que não está nem aí pra busca por essa utopia inalcançável chamada autenticidade. Mas nada nos impede de viver uma outra época sem estarmos vestidos adequadamente em cada pequeno detalhe para ela.