sábado, 7 de dezembro de 2013

O estudo, suas consequências e suas necessidades.


Olá, amigos!

Pois bem, o que seria uma semana se tornou algo como doze. E não haverá mais uma periodicidade definitiva por aqui. Isso, por incrível que pareça, consome mais tempo do que eu gostaria e tenho outras prioridades, sinto muito.

Como disse na última postagem, iria falar do reenactment e o estudo propriamente dito nesta. Antes tarde do que nunca, afinal.

Bom, já falei muito em postagens anteriores sobre a necessidade do estudo, sobre o porque do estudo, sobre isso e aquilo e blablablá com alguma coisa além. A questão de hoje é diferente. Se trata um pouco da relação com a instituição e do modo a se estudar e apresentar esses resultados.

Obviamente, cada pessoa estuda de um jeito e ensina de um jeito. Tudo é troca então, sim, se ensina mesmo sem querer. E esse é um outro ponto, aliás. Mas o caso que quero tratar é mais ou menos sobre que tipos de material ter como base ou como um recriacionista deve se portar devido à sua – acreditem, ela existe – responsabilidade.

Primeiramente, sobre o aprendizado:

Pois bem, quero fazer recriacionismo de algum período e não sei por onde começar. O que faço?

Muitos recriacionistas cometem o erro gigantesco de comprar todos os manuais básicos sobre algum tema x e com isso, leem a mesma coisa várias vezes sem nenhum aprofundamento e acham que realmente estão fazendo um grande negócio.

Manual que me refiro são livros como a série “Grandes Civilizações do Passado”, um bom material em português, mas que é para um público geral e não específico.

Vejam bem, não critico quem os lê ou quem gosta deles. E nem quem se sente seguro lendo apenas este tipo de material. Acho que é justamente por onde começa e, para muitos BONS recriacionistas, é também onde acaba. Porém são livros genéricos e tudo vai do seu objetivo como reenactor.

Antes de tudo, leia e veja se você gostou do período como ele é apresentado. Leia uns dois, pra ter uma noção do que um autor pode dizer que foi negligenciado pelo outro e compare. Se algo te chamar a atenção, pesquise, se não, passe pro próximo assunto. Não é crime dizer que não se interessa pela, digamos, produção de vidro anglo saxônica do século VI e que por isso não entende os processos nem a importância econômica disso. Muito pior é afirmar categoricamente que se tinha vidro na Suécia do século IX é porque foi comercializado com árabes e que não existia produção local, porque afinal, quem seria capaz de juntar areia e fogo pra fazer vidro longe do Oriente Médio e norte da África naquele tempo, não é mesmo?

Por incrível que pareça esse tipo de bobagem é repetida por pessoas – não só aqui do Brasil, mas no mundo todo – que possuem essa ideia superficialíssima do período que “estudam”. Porque folhearam uma revista de 14 páginas sobre determinado assunto e se dizem doutores.

Pois bem, as motivações de um recriacionista não são as mesmas de um doutor em história ou arqueologia. Mas existe uma responsabilidade por parte de alguém que recria saber do que se trata aquilo que diz recriar. Gosto da analogia de astrônomos e astronautas. Um estuda e graças a isso possibilita ao segundo ficar lá, voandinho de boa no espaço, mas o astronauta precisa saber que se tirar seu traje ele morre. E também precisa saber controlar os equipamentos que o engenheiro espacial fez e saber as leis da física que não se aplicam a ele quando está em gravidade zero e tudo o mais. A desculpa de ser um astronauta não o permite ser burro, pelo contrário. Mesmo que ele não saiba nem de longe tudo o que o astrônomo faz, ele precisa saber muita coisa.

O reenactor é um astronauta. No espaço sideral da recriação histórica é impossível manter suas condições vitais sem uma ajudinha dos astrônomos (que aqui no nosso caso são historiadores, arqueólogos, artistas e artesões que recriam peças, etc). Nós precisamos de estudos sérios porque eles nos dão segurança e credibilidade. Ou, como diria um grande mestre que tive na minha passagem breve pela faculdade de História, são esses estudos que nos legitimam.

Nós não temos o dever de ler fontes no original e uma infinidade de artigos acadêmicos sobre tudo o que acontecia no recorte que escolhemos, mas se quisermos fazer, por exemplo, uma pesquisa quanto à fundição de ouro na Grécia Clássica, é bom fuçar tudo a respeito das nossas dúvidas antes de gastar uma fortuna tentando pra dar errado.

Volto então a falar de manuais. Eles são necessários para TODO recriacionista, quando disponíveis. Po, eles comprimem diversos assuntos em um mesmo livro e você pode ter uma noção básica de tudo. Acontece que se você mergulha de cabeça nesse universo e se torna um fanático (como... eu) manuais não bastam. E você não pode se dar ao luxo de passar informações erradas ou meio lidas por preguiça. É muito melhor assumir que não sabe do que falar bobagem. Porém, ler diversos manuais da mesma coisa para se mostrar "entendedor" não fazem nada a você além de reafirmar o que você já leu no anterior.

Quanto à responsabilidade que assumimos ao recriar uma coisa, acontece que só de fazer e ser observado já estamos passando alguma coisa. E devemos tomar cuidado com o que fazemos. Um recriacionista não pode chegar no meio de um público dizer que aquela função que executa é a melhor do mundo e que era isso isso e aquilo, porque gostou ou leu um texto que falava SÓ sobre aquilo.
Para que entendam, eu sou cuteleiro. Obviamente leio muitos artigos que falam APENAS sobre a produção de lâminas no período viking. Se é um artigo que fala sobre aquilo, ele vai dizer a importância daquilo, sem necessariamente citar as infinitas outras profissões e isso vai dar a conotação de que as outras profissões, perto da produção de armas, são menores, irrelevantes e tudo o mais. Se eu não tenho um conhecimento amplo da coisa, posso me pegar acreditando nisso. Aí reside o problema. Imaginem eu dizendo que “o ferreiro na Era Viking era a profissão mais importante, porque o aço era isso e aquilo e a faca era a da melhor qualidade” e outras asneiras mais. Eu estou mentindo, baseado numa pesquisa incompleta da minha parte, que analisou um ofício em um contexto isolado. Eu não preciso saber tudo sobre os demais, já que eles não me interessam, mas devo saber o básico, saber em que contexto essa forjaria está inserida.

Todo reenactor precisa dos manuais porque eles poupam tempo nesse sentido. Eu estudo o tema, dentro dele, que me interessa. Além do mais, esse tipo de livro nunca é escrito por um cara só. Quase sempre são ajuntados de textos de diversos estudiosos sobre cada tema, organizados por um idealizador. Dentro da própria academia cada um se especializa em algo, mas sem negligenciar o contexto todo todo, mesmo que não entenda tudo sobre tudo. Em outras palavras, uma pessoa com pós doc em pedras rúnicas gotlandesas pode não saber NADA sobre quais peixes serviam de alimento na mesma ilha. Mas sabe que os gotlandeses pescavam e que tinham conexões comerciais e que eram economicamente privilegiados e tudo o mais.

Uma coisa que eu já vi muito em meus estudos é arqueólogo, por exemplo, que na hora de detalhar uma espada dá informações incompletas e que, para mim, são óbvias ou mesmo contrárias às descrições, porque eles NÃO SÃO conhecedores de siderurgia. E eles não tem a menor obrigação de ser. Na maioria dos casos, eles se abstém. E se a própria chefe do departamento de história, arqueologia e preservação da Universidade de Oslo deixa claro que não sabe algo, quem é o recriacionista f**ão pra dizer que sabe tudo e dizer que “vidro na Escandinávia com certeza era importado”?

Bom, o outro fator que queira falar brevemente aqui é uma continuação deste. Naturalmente, o astrônomo vira astronauta e o astronauta vira astrônomo. E misturam essas funções. Nada mais natural e nada mais desejável, embora não sejam todos que possuem vocação pras duas coisas.

Como disse, nem sempre o historiador possui conhecimento técnico sobre alguns assuntos. Natural. E aí surge o dilema: conciliar o estudo de antropologia, arqueologia, história, linguística e tudo o mais com mais essa área do conhecimento pra ontem oooouuuu chamar a ajuda de um cara que entenda deste assunto em especial, mesmo que em detrimento do resto? Em boa parte dos casos, a segunda opção é a mais escolhida. Por motivos mais que óbvios.

Uma dessas ocasiões é o estudo dos artefatos de Staffordshire. Pra muitos desses estudos a equipe de pesquisadores conta com recriacionistas ou artesãos especializados em recriar objetos dessa época. Isso gera uma compreensão muito maior para ambos os lados, de como as coisas eram feitas e consequentemente o possível valor que tais coisas tinham. Isso amplia o contexto, indica técnicas que eram usadas, as origens desses materiais, a qualidade de determinadas peças em detrimento de outras e por aí vai.

No caso de uma grande batalha, é possível saber em que proporções o que as fontes históricas nos contam é ou não verdade, se cabiam duzentas pessoas num barco, se uma espada podia realmente cortar uma pessoa em dois... Coisa que um historiador em sua escrivaninha não pode afirmar sem alguns “testes”, que caem na seara do reenactor.

Recentemente li um ensaio sobre arcos e flechas na Era Viking que me decepcionou, por exemplo, com uma hipervalorização da arma só possível pra quem nunca atirou com um contra uma parede de escudo colada em outra. Se ele tivesse ido atrás de estudos feitos por recriacionistas-historiadores, poderia ter apresentado uma argumentação bem melhor do que a que apresentou e por aí vai.

A Academia se aproveita desse “estudo de campo voluntário” em muitas ocasiões, pois ambos os lados só tem a ganhar com isso. E os envolvidos no reenactment se envolvem com a Academia pois ela traz informações que seriam inalcançáveis de outra forma. Astrônomo e astronauta. Sem um cara pra ir pegar pedaços da lua, não é possível estudar a composição do solo de lá. Sem um astrônomo pra dizer O QUE É a lua, o astronauta não teria o que fazer.

A diferença na analogia é que o recriacionista trabalha por conta própria, por questões pessoais e movido por pura curiosidade e pode focar seu estudo no que bem entender, negligenciando um aprofundamento em assuntos que não lhe importem.

Mas a responsabilidade é a mesma. Não dá pra dizer, como já vi uma vez um membro de um grupo europeu dizendo, que “Vikings criavam lobos como animais de estimação, não cães”, só porque ouviu algo parecido em alguma letra de música.

Nós tal como historiadores, temos um compromisso com a verdade, mesmo que seja uma verdade entre infinitas.

Abraços e até o próximo post.