segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Purismo: Revendo esse conceito.

Boa noite!

Semana passada eu cheguei a comentar sobre réplicas e eu também queria voltar ao tópico da autenticidade. Desculpem se eu parecer tautológico.

Certa vez recebi uma certa crítica por fundamentar o meu grupo, o Escudo dos Vales, em conceitos "muito puristas". Vendo pelo lado de um brasileiro tentando fazer alguma coisa voltada ao medievo no nosso país, esse argumento faz bastante sentido.

Querendo ou não, nossa visão de Idade Média é um esteriótipo de barbárie e regresso da humanidade que perdurou durante mil anos. Independente de alguém pensar num merovíngio do século V ou num cavaleiro templário do XIII ou mesmo num torneio de justas do século XV, tudo é "cultura medieval" (um termo por si só um bocado babaca). E as pessoas aqui tem a visão de que todas essas coisas aconteciam ao mesmo tempo. É meio estranho se pensar que há meros duzentos anos não havia nem energia elétrica sendo usada pelo homem e cá estou eu, digitando num computador, enquanto aqueles pobres sujeitos ficaram estagnados durante mil anos...

Eu poderia voltar no post sobre o recorte específico e dizer tudo aquilo de novo, mas não é a idéia desse tópico.

O que a maioria esmagadora dos recriacionistas mundo a fora fazem é uma aproxmação, digamos, grosseira da realidade. Por mais pesquisa que haja, por mais rigor e parâmetros que escolhamos seguir, nós prestamos atenção em outros detalhes, como custo, segurança, viabilidade técnica e tudo o mais.

Uma espada 100% autêntica, pra começar, deveria ser afiada e em muitos casos de um aço não muito confiável, dependendo do período recriado. Só sair com ela na rua já geraria problemas, desembainhá-la seria pior e eu nem entro no mérito de usá-la, por motivos óbvios.

Um escudo quebraria rápido de mais e o gasto para repô-lo seria insustentável. Uma cota de malha feita com argolas rebitadas exigiria meses de trabalho contínuo e nosso tempo não permite isso. Fazer aço em casa à partir de minério exigiria um suprimento considerável de carvão e um espaço invejável - e sem vizinhos - ... E só pra colocar a cereja no bolo, metais preciosos são ainda mais preciosos nos dias de hoje.

Falando por fim das réplicas, há recriacionistas mais abastados que só utilizam estas. Há uma certa "corrente" entre os reenactors que opta por isso. Afinal, utilizando réplicas de um determinado lugar e tempo, simplesmente elimina-se muito do falatório. O que poderia ser mais autêntico que um "set" inteiramente recriado dos equipamentos do barco funerário de Sutton Hoo para um "rei/chefe saxão do século VII" além dos próprios artefatos restaurados?

Há algumas pessoas engajadas na produção de réplicas fiéis ou com poucas modificações (mais no tocante a matéria prima empregada) e estes ganham cada vem mais destaque no mercado do recriacionismo "de luxo", principalmente na Europa. O motivo é que além de preços altos que geram certa exclusividade, há o fator da qualidade: um cara que tem acesso aos originais em museus e tem um público que paga bem, obviamente tem mais tempo para estudar suas peças mais a fundo e fazer trabalhos cada vez melhores. Suas peças se tornam objeto de desejo entre colecionadores e mesmo instituições que enxergam no reenactment um meio de promover suas atividades (como museus, universidades, etc...)

Apesar de necessária para uma "legitimação" do reenactment como prática educativa e séria, obviamente não há a necessidade de que todos os reenactors ajam desta forma, se apegando a réplicas 100% fieis às originais.

Ou seja, num geral a recriação da maioria das pessoas não tem nada de purismo, se formos analisar essas pessoas de grana que utilizam peças folheadas a prata e ouro, espadas com pattern-welding/bloom steel (quando não um pattern-welding COM bloom steel), detalhes em osso de baleia e tudo o mais.

Acontece que sempre há outro lado...

Dizer isso tudo pode parecer um incentivo ao uso incorreto de materiais e coisa e tal. Por isso volto aos posts anteriores sobre recorte e autenticidade ou mesmo o último post, sobre os insumos disponíveis aos recriacionistas.

Para sintetizá-los: a pesquisa é altamente necessária para evitar anacronismos, mesmo que se invente algo que nunca existiu de fato.

Para ilustrar o parágrafo anterior da forma que acho mais clara no momento, volto a pensar num futuro reenactment de nossa era: pense em alguém querendo "construir" um carro típico dos últimos anos do século XX. Através das evidências ele vai saber o tipo de tecnologia e configurações usadas na mecânica, o design arredondado convencional e algumas marcas. Com isso ele poderia criar um Peugeot com um motor Volks (pois isso passaria desapercebido para a grande maioria de nossos contemporâneos), mas com o tradicional aspecto "felino" dos carros da Peugeot, ainda que inventado. Ele poderia colocar o estofamento com pele de jacaré se quisesse, pois sabe que isso é bastante customizável, com painel de plástico, ponteiros analógicos, cinco marchas e tudo o mais. Caso, hoje, víssemos tal carro, ele não nos pareceria estranho em nada. Isso é ser conjectural, mas autêntico.

Se o mesmo recriacionista criasse um carro com a mesma aparência felina com um emblema da jeep, nós estranharíamos. Mais ainda se o motor fosse um V8 num carro de aspecto popular. E se além disso tivesse traços quadrados e redondos ao mesmo tempo, nós veríamos um carro sem a harmonia típica deste período. Este recriacionista seria, portanto, um cara sem estudo profundo desse nosso tempo.

Um purista de fato, no entanto, iria pegar o Peugeot pronto, customizar o possível (como o estofamento interno, a cor, as calotas, insulfilm...) e deixaria toda a estrutura idêntica à de um original, embora talvez mudasse alguns tamanhos e proporções que, para nós, pareceria normal.

A diferença entre o segundo exemplo e os outros é óbvia, pois é alguém sem estudo e sem conhecimento que simplesmente cria o que lhe dá na teia parcamente baseado no período em questão. A diferença do primeiro para o terceiro é de que o primeiro, muitas vezes, precisa de uma base teórica bem maior do que a do último, uma vez que deve saber exatamente o porquê de cada detalhe de uma porrada de originais para criar um objeto inteiramente novo que pareça verossímil, enquanto o outro pode se permitir se focar e se especializar num único modelo e ninguém poderá dizer que ele não é autêntico.

Cada um tem vantagens e desvantagens: O carro inventado, infelizmente, nunca pertenceu ao nosso tempo, enquanto o carro refeito tende a criar uma padronização entre todos os "reenactors do futuro", coisa que não é algo que realmente existe em nosso tempo (digo todos tendo um Peugeot na garagem).

Logo, os dois são lados de uma mesma moeda. Todo o post pra ilustrar que o estudo do aficcionado é o que dá a liberdade ao recriacionista para inventar dentro de uma gama enorme de possibilidades e a única chance de realmente "entrar" na "mentalidade" da época, sentir o tal do zeitgeist, enquanto a replicação é a chave para alcançarmos uma aproximação maior com uma especificidade única e 99% segura dentro de um todo bem mais amplo. Uma se faz necessária da outra.

Enquanto isso o desconhecimento e desinformação devem ser deixados de lado, pois eles não nos aproximam do passado, apenas reforçam os esteriótipos, que geralmente são equivocados. Como a velha história de espadas de 10kg, vikings usando machados de duas lâminas, martelos de guerra como aqueles de jogos de RPG... E por aí vai...

Até a próxima semana.

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