segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O recriacionista e a instituição

Boa noite!

O tema de hoje será continuado na próxima semana, de certo modo, no qual falarei sobre o estudo propriamente dito, mas hoje falarei sobre a correlação reenactment/instituição. Por instituição eu me refiro com mais ênfase à ideia de Universidade.

Mais uma vez, vou aplicar o alvo da fala prioritariamente ao exterior por três motivos: a) no Brasil não há essa relação ainda, pelo simples fato de não termos recriacionismo (digo numa escala visível). Simples assim. b) apesar de podermos criar uma intimidade entre a prática e as Universidades através de pesquisas de extensão, há no meio acadêmico nacional muita gente que toma o reenactment como uma brincadeira sem seriedade. Há também o fato de muita gente ligada ao ensino formal, aqui, desmerecer o não formal, como “irrelevante” ou até contrário às suas intenções. c) por último mas não menos importante, há o fato de que algumas universidades só se proporiam a dar apoio à atividade da recriação histórica se essa história fosse um eco da nossa. O que de certa forma não está errado, claro, mas excluir o alheio é bem diferente de favorecer o próprio e aqui, por questões políticas vigentes, apenas alguns “alheios” são “próprios” (como o esforço público em tornar nossa matriz africana mais brasileira do que a indígena, só pra citar um exemplo).

Enfim, vamos lá.

A recriação (com i), além de ser recreativa (com e), tem também o caráter educativo, como já disse aqui no blog antes. Essa forma de ensino se dá, primariamente, no âmbito não formal, ou seja, um ensino não institucional, sem cartilhas pré-definidas, mas que ainda assim transmite algo.

Meu crime: sou artista, não historiador. Porém, cursei uma faculdade de História por algum tempo e a relação entre formalidade e informalidade nessas duas áreas é completamente diferente.

Na educação brasileira, apesar de estar revendo consideravelmente esta estrutura nas últimas duas décadas, há uma hierarquização das formas de ensino. Em primeiro lugar vem o ensino institucional, fechado, com sua ementa bem definida e tudo o mais Este é o chamado ensino formal (desculpem a repetição de termos, mas é necessária). À seguir vem o ensino não formal, com compromissos muitas vezes mais sociais do que educativos. Ainda assim, ele tem uma certa organização para que alcance suas intenções. Por último vem o ensino informal, diferente do anterior. Basicamente tudo que se faz é ensino informal se não entra nas duas categorias já citadas, podendo ser uma conversa com o pasteleiro sobre futebol ou ler o jornal sobre o clima.

Como disse, estamos avançando, mas nos meios acadêmicos de História ainda reina um pouco essa hierarquização (afinal, professores transmitem muito mais da sua própria visão de mundo a seus alunos do que se poderia imaginar). No meio da Arte isso é diferente, porque... Bem, porque artista é tudo louco, como diria o resto da população. Em breve, se nada de errado ocorrer, a educação brasileira como um todo perceberá a ferramenta que está deixando na gaveta.

E o que tudo isso tem a ver com o recriacionismo?

Bom, sendo uma modalidade não formal de ensino, tudo. Em muitos países há a integração dessas três esferas, pois as três se articulam continuamente na formação do indivíduo. Negar ou menosprezar alguma delas é, quase que literalmente, tirar uma perna de um tripé. Ou pelo menos encurtá-la, deixando-o desestabilizado.

Na Europa, a Academia (erudição, pessoal, não musculação) passou a adotar o recriacionismo como uma potente forma de atingir a população com assuntos que, de outra forma, ficariam meio “mal-explicados”.

Traduzindo: ao invés de deixar qualquer um disseminar um conhecimento de forma errada, causando uma desinformação tremenda sobre uma parcela da sociedade, a Universidade assume o papel de transmitir esse conhecimento de um modo, ao mesmo temo que atraente, confiável. É claro que no caso de um novo regime totalitário qualquer, isso pode e com certeza VAI dar merda, mas nessas situações, independe do não formal, daria, todavia.

Bom, se uma Universidade toma as rédeas da transmissão de pesquisas acadêmicas para o grande público, inevitavelmente você desmonta esteriótipos errados. Imaginemos essa situação ideal aqui no Brasil: Se houvesse, digamos, no Museu do Ipiranga, um evento cujo tema fosse a proclamação da Independência, com gente vestida como alguém do início do século XIX, mas com um ator fazendo Dom Pedro em cima de um burro de carga voltando de Santos, o ilustre e equivocado (mas belíssimo, pra sermos justos) quadro de Pedro Américo poderia ser, finalmente, encarado como uma interpretação romântica do grito e não como um quase-retrato, como alguns o enxergam.

Um evento desses seria algo visualmente fantástico para um público leigo que, “por osmose”, acabaria entrando no clima e inevitavelmente aprenderia algo sobre a história de nosso país. Com uma “tradicionalização” desse ato, digamos, todos os dias 7 de Setembro, viraria uma espécie de evento turístico que acabaria gerando mais interesse do povo como um todo por história, que levaria à leitura, à uma maior acumulação de conhecimento, que geraria mais senso crítico e blablabla...

Não digo que o reenactment é a solução da humanidade, óbvio que não, mas pode ser usado como um passo para uma valorização da cultura, sem demagogias politiqueiras ou valorização de determinados aspectos através da desvalorização de outros (como certas políticas nacionais que nos rodeiam atualmente).

No exterior isso ocorre. Os “Open-air museums” são presentes em diversos lugares na Europa. A encenação da batalha de Hastings é um evento aguardado por milhares de reenactors todos os anos. Mesmo museus “tradicionais” às vezes apresentam réplicas de peças de época (que por sua vez são, também, recriação histórica) que podem ser seguradas ou vestidas pelo público, geralmente para que tirem fotos, mas que os fazem ver como seria o original e tocar algo muito próximo.

Além disso, é muito mais interessante e divertido você aprender alguma coisa num museu através de atividades do que lendo placas e textos de parede. Esses são indispensáveis, claro, mas se você ficar curioso, provavelmente vai ler com mais vontade e aí se lembrará dele por mais tempo.

Para crianças (o clichê de “futuro da nação” é cai bem nesse momento) é ainda mais divertido, porque ao invés de ver um manequim, frio e estático dentro de uma vitrine, ela veria, por exemplo, um ferreiro martelando uma ferradura numa forja a carvão. Ouviria, sentiria o calor. Essa experiência dificilmente seria apagada da mente dela e mesmo que ela fosse trabalhar com TI, com certeza haveria um maior respeito por essa ou qualquer outra área menos “avançada tecnologicamente”, graças a alguma lembrança agradável (torcendo pra criança não enfiar a mão na brasa, claro, já que seu sentimento acabaria se invertendo...)..

E o que isso tem a ver com universidades em si? Bom, a maioria dos museus do mundo, independente da área de pesquisa, são administrados por universidades. O próprio Museu do Ipiranga é da USP.

É muito mais barato prum museu (e, portanto pra Universidade que o mantém) convidar recriacionistas para esses eventos e demonstrações do que treinar funcionários, contratar atores ou mesmo contratar profisionais especializados nessas áreas. O reenactor, assim, ganha uma boa área de atuação e um reconhecimento social como um agente formador e não apenas um excêntrico desajustado.

Apesar de eu, por exemplo, trabalhar como cuteleiro e gostar das tais dark ages, adoraria me vestir como um ferreiro colonial do século XVIII e mostrar pras pessoas como era a confecção de ferrarias de campanha (supondo que eu as soubesse fazer, claro. E eu com certeza não cobraria nada por isso se tivesse esse espaço. Claro, se uma instituição dissesse “preciso de você para tal dia”, a coisa muda de figura, mas se fosse um evento para recriacionistas, com um cronograma livre e tal, eu não estaria lá “à trabalho”, mas sim “por lazer”. E acredito que a maioria dos recriacionistas envolvidos com algum tipo de produção relacionada ao período que recria pensa da mesma forma.

Para o recriacionismo em si, por outro lado, acaba surgindo uma responsabilidade saudável. Se um museu tenta retratar um período, automaticamente ele irá tentar convidar os reenactors que tenham qualidade para tal e não qualquer um. Dessa maneira, irá chegar naqueles que conheçam o período através do estudo. O próprio museu, dessa maneira, pode disponibilizar suas pesquisas e acervo para enriquecer essa recriação, melhorando a qualidade da prática para não “sujar sua imagem”.

Assim surge uma interdependência: a instituição precisa de BONS recriacionistas e o recriacionista precisa de BOAS pesquisas (criadas principalmente por pesquisadores de universidades). Ambos saem ganhando, ainda que não haja um compromisso fixo de exclusividade em nenhuma parte.

E o público sai ganhando em dobro: aprende, interage, se diverte e consegue, diferente do conhecer ou entender, compreender por um momento um período deixado para trás no tempo.


Até a próxima semana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário