segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A luta no recriacionismo histórico

Boa noite!

O assunto de hoje é um piso no calo de muita gente, embora infelizmente acho que os assuntos anteriores também são.

A postagem poderia ser resumida em "lutas, não necessariamente, são recriacionismo".

Explicando os motivos que me levaram a escrever isso:

Vejo algumas pessoas confundindo apresentações de batalha com recriação histórica. Vejo algumas pessoas chamando Battle of Nations de recriação histórica. Vejo algumas pessoas chamando batalha campal de recriação histórica e por aí vai a lista. Não, não necessariamente essas coisas tem qualquer ligação com a recriação histórica.

UFC não é recriação histórica e não há nenhuma dúvida quanto a isso, tal como o campeonato mundial de luta greco-romana também não o é, mesmo sabendo que as pessoas praticam wrestling desde que os primeiros animais descobriram que dá pra "prensar" o outro na parede. Se fosse assim, o simples fato de falar qualquer outra língua seria uma espécie de reenactment.

Pois bem, dentro desse "mundinho colorido" do reenactment, é comum voltarmos nossas atenções ao aspecto bélico das culturas do passado. Não porque sem elas não faríamos recriacionismo, mas porque é, simplesmente, divertido. Ao ir pra um festival como o Woling, Hastings ou Foteviken, lutar é a atividade mais "popular". No sentido de ser democrático mesmo: qualquer um pode chegar lá com o devido preparo prévio, pegar uma espada e bater nos amigos, sabendo que não vai morrer com isso e que vai extravasar pelo menos um pouco.

No entanto, esse "live steel", que é um nome comum dado à prática de lutar com armas de aço, não é próprio da recriação histórica. É apenas mais uma prática absorvida pelos recriacionistas. E também não é o mesmo que o HEMA, Stage Combat ou a batalha campal popular no Brasil, ou como o SCA.

Pra explicar um pouco, vou resumir (injustamente, pois o espaço é curtíssimo) essas práticas.

Live steel/buhurt: Imagine alguns caras com armas de aço, se batendo tendo algumas regras como parâmetro. Há uma certa necessidade de preparo físico, mas não tanto domínio de técnicas. Não é uma arte marcial, mas o resultado de uma vontade de se atacar com espadas e machados. O Battle of Nations (um sonho meu, assumo) não deixa de ser, em boa parte, um Live Steel. Nos EUA é até chamado de "Combate com Armadura" esse tipo de esporte. Veja bem, esporte não é arte marcial ou vice versa, mas muitas vezes um comporta características do outro. Apesar disso, algumas equipes do BoN não são apenas praticantes de Live Steel, mas sim de HEMA. E apesar de o Battle of the Nations ter sim um evento de reenactment em paralelo, o foco do evento é o campeonato mundial de combate com armaduras.

HEMA: Historical European Martial Arts. É exatamente o que o nome sugere. Assim como o Kendo está para o Kenjutsu e a Esgrima Olímpica está para a Esgrima Clássica, o Live Steel pode estar para a HEMA. Digo "pode estar" pois o Live Steel, como já disse, nem sempre envolve técnicas avançadas, é mais uma brincadeira que um esporte na maior parte dos casos, mas às vezes é encarado de forma bem esportiva, com regras claras e movimentos extraídos de grandes mestres. HEMA, porém, é uma arte marcial de fato. Ou melhor, várias artes marciais, construídas e reconstruídas através da leitura e estudo de manuais medievais e renascentistas e praticadas com seriedade em muitos países. Claro que em suas competições ela é tratada como um esporte, mas há muito mais nela, como em toda arte marcial: há filosofia, preparo físico, estudo e por aí vai. Por si só é uma recriação histórica, na mesma proporção que os mais tradicionalistas dojos de karate fazem, mas a vontade não é ilustrar um período e sim compreender um pequeno aspecto dele. Não importa como as armas eram feitas se elas não tiverem a qualidade. Não importa as roupas se elas não possuem o conforto e a resistência de hoje e por aí vai. É uma prática que se volta para si própria e para os praticantes e não para um público, ainda que tudo seja divulgado, entendem?

Stage Combat: Teatro, pura e simplesmente. Lutas ensaiadas ou, pelo menos, com pouca improvisação. O que importa é um "bom show". Obviamente, para um bom show deve haver verosimilhança e para tal, bons coreógrafos vão estudar os movimentos de bons lutadores. O principal atrativo do Stage Combat é que ele é realmente mais emocionante que uma luta "de verdade". Combates reais tendem a ser rápidos ou muito parados (paradoxo facilmente observável numa luta), enquanto no Stage há dramaticidade, enredo e tudo o que o teatro pode fazer. No Brasil temos um bom grupo que apresenta Stage Combat ao mesmo tempo em que estuda Esgrima Clássica Renascentista (que não deixa de ser uma forma de HEMA), a Frater Pendragon. Um exemplo internacional são os tchecos do Merlet com apresentações realmente de tirar o fôlego.

Batalha Campal/SCA: O SCA (Society for Criative Anachronism) e a Batalha Campal possuem preceitos similares, portanto falarei de ambos no mesmo parágrafo: divertir os competidores, proporcionar uma experiência mais ou menos segura, estimular o imaginário. Ambos usam armas "de mentira", geralmente de espuma, vinil ou coisas similares. A idéia é fazer uma espécie de jogo, com acumulação de pontos, vencedores e perdedores. Se você acerta alguém, ganha pontos. Se acerta um certo número de vezes, o outro "morre" e saí da brincadeira até a próxima rodada. Nesse ponto, bastante similar com alguns live steel. A diferença é mesmo nos equipamentos usados, já que os custos são bem menores e as armas são menos perigosas. Por uma questão estética costuma ser deixada de fora do reenactment e independente do peso e formato de suas armas, é literalmente impossível usá-las como se fossem armas reais, impossibilitando, também, um entendimento dessas últimas através dessas reproduções. Mas, e tudo tem um mas, é uma coisa divertida se você não cair em alguns mitos que alguns maus praticantes criam pra se legitimar (como "armas com o mesmo balanço que a real", "prática similar à da esgrima histórica" e blablabla, ainda que conceitos de estratégia sejam, muitas vezes, reproduzíveis na Batalha Campal).

Tendo essas "modalidades" em mente, o que o reenactor deveria escolher? Muita gente responderia "HEMA" ou "live steel". A batalha campal pode ser aproveitada. Como você, mãe, pai, irmão mais velho preocupado vai permitir que seu filho de, digamos, 7 anos de idade pegue uma espada de aço, ainda que cega, pra bater noutra pessoa? Em casa é uma coisa, mas envolvendo gente desconhecida a coisa muda. Não que eu ache que BC seja para crianças, mas é o exemplo mais claro que penso no momento. É uma brincadeira de longe mais segura e mais barata e cumpre seu papel de estimular o imaginário e a vontade de, um dia, ir pra uma prática mais perigosa e abrangente. Dentro do recriacionismo histórico, é algo muito pouco aproveitado, mas com um potencial significativo se souberem usá-la.

Pra quem tem mais disciplina e tempo, a HEMA é uma boa escolha, ainda que exija muito de seus praticantes. Não dá pra decorar o nome de Lichtenauer e falar que ele tem qualquer material sobre escudo grande redondo, como já ouvi gente dizendo por aí pra dizer "treino luta viking". Ou ainda dizer que pratica uma arte marcial milenar cujo nome é o nome de uma academia alemã qualquer, só porque era o nome do vídeo no youtube. HEMA exige tempo de leitura e estudo, ou prática em alguma academia (que inexiste no Brasil). Mas nossa terra é cheia de especialistas em genética que não sabem o que é uma célula...

Live Steel é, de longe o mais fácil, embora não mais barato, a se fazer. Contextualizando bem, é a forma mais convincente e reveladora sobre quase qualquer período da história (ou você acha que, tirando aquela elite militar reduzida, muitas outras pessoas sabiam empunhar uma arma que não fosse uma ferramenta?). De qualquer forma, como disse, luta não é necessário, então se a vontade é se divertir com a luta enquanto leva o resto a sério, não há a menor obrigação de se tornar um artista marcial. Pra isso o Live Steel acaba sendo mais importante que uma prática estudada como a HEMA.

Quanto ao Stage Combat, bem, o reenactment envolve uma bela parcela de teatralidade. Pra certos públicos, um show fight é muito mais interessante que uma demonstração de mestria marcial. Além disso, evita alguns problema no caso de um resultado já determinado, como a recriação de algum duelo histórico conhecido onde você não quer acertar a cabeça do seu oponente e ele continuar de pé porque ele é quem te mata. O problema é que exige um bom tempo de ensaio e é praticamente impossível em combates de massa.

Bom, tendo tudo isso em mente... Qual o sentido de um perneta, por exemplo, lutar? Seria algo insalubre pra todos que estivessem na mesma luta. Isso quer dizer que o perneta não pode ser um reenactor? De modo algum.

A luta, tal como qualquer atividade, é apenas uma faceta do recriacionismo histórico. É uma faceta que chama muita atenção, de fato, mas que não é a mais importante que qualquer outra. E não há nenhum sentido em se esforçar para ser um bom reenactor e utilizar elmos e espadas importados com tênis nike. No máximo, você está mostrando uma luta e não um período e se é só para tal, não precisa de todo o resto da indumentária.

Em muitos países esse é um mal que já foi sanado com o tempo. Aqui, como somos pouco mais que um embrião, ainda vai algum tempo, mas até que estamos caminhando rápido (agradeçamos à internet, que não era presente nos anos 80 na Europa).

Por hora é isso.
Até semana que vem!

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