segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O recriacionista e a instituição

Boa noite!

O tema de hoje será continuado na próxima semana, de certo modo, no qual falarei sobre o estudo propriamente dito, mas hoje falarei sobre a correlação reenactment/instituição. Por instituição eu me refiro com mais ênfase à ideia de Universidade.

Mais uma vez, vou aplicar o alvo da fala prioritariamente ao exterior por três motivos: a) no Brasil não há essa relação ainda, pelo simples fato de não termos recriacionismo (digo numa escala visível). Simples assim. b) apesar de podermos criar uma intimidade entre a prática e as Universidades através de pesquisas de extensão, há no meio acadêmico nacional muita gente que toma o reenactment como uma brincadeira sem seriedade. Há também o fato de muita gente ligada ao ensino formal, aqui, desmerecer o não formal, como “irrelevante” ou até contrário às suas intenções. c) por último mas não menos importante, há o fato de que algumas universidades só se proporiam a dar apoio à atividade da recriação histórica se essa história fosse um eco da nossa. O que de certa forma não está errado, claro, mas excluir o alheio é bem diferente de favorecer o próprio e aqui, por questões políticas vigentes, apenas alguns “alheios” são “próprios” (como o esforço público em tornar nossa matriz africana mais brasileira do que a indígena, só pra citar um exemplo).

Enfim, vamos lá.

A recriação (com i), além de ser recreativa (com e), tem também o caráter educativo, como já disse aqui no blog antes. Essa forma de ensino se dá, primariamente, no âmbito não formal, ou seja, um ensino não institucional, sem cartilhas pré-definidas, mas que ainda assim transmite algo.

Meu crime: sou artista, não historiador. Porém, cursei uma faculdade de História por algum tempo e a relação entre formalidade e informalidade nessas duas áreas é completamente diferente.

Na educação brasileira, apesar de estar revendo consideravelmente esta estrutura nas últimas duas décadas, há uma hierarquização das formas de ensino. Em primeiro lugar vem o ensino institucional, fechado, com sua ementa bem definida e tudo o mais Este é o chamado ensino formal (desculpem a repetição de termos, mas é necessária). À seguir vem o ensino não formal, com compromissos muitas vezes mais sociais do que educativos. Ainda assim, ele tem uma certa organização para que alcance suas intenções. Por último vem o ensino informal, diferente do anterior. Basicamente tudo que se faz é ensino informal se não entra nas duas categorias já citadas, podendo ser uma conversa com o pasteleiro sobre futebol ou ler o jornal sobre o clima.

Como disse, estamos avançando, mas nos meios acadêmicos de História ainda reina um pouco essa hierarquização (afinal, professores transmitem muito mais da sua própria visão de mundo a seus alunos do que se poderia imaginar). No meio da Arte isso é diferente, porque... Bem, porque artista é tudo louco, como diria o resto da população. Em breve, se nada de errado ocorrer, a educação brasileira como um todo perceberá a ferramenta que está deixando na gaveta.

E o que tudo isso tem a ver com o recriacionismo?

Bom, sendo uma modalidade não formal de ensino, tudo. Em muitos países há a integração dessas três esferas, pois as três se articulam continuamente na formação do indivíduo. Negar ou menosprezar alguma delas é, quase que literalmente, tirar uma perna de um tripé. Ou pelo menos encurtá-la, deixando-o desestabilizado.

Na Europa, a Academia (erudição, pessoal, não musculação) passou a adotar o recriacionismo como uma potente forma de atingir a população com assuntos que, de outra forma, ficariam meio “mal-explicados”.

Traduzindo: ao invés de deixar qualquer um disseminar um conhecimento de forma errada, causando uma desinformação tremenda sobre uma parcela da sociedade, a Universidade assume o papel de transmitir esse conhecimento de um modo, ao mesmo temo que atraente, confiável. É claro que no caso de um novo regime totalitário qualquer, isso pode e com certeza VAI dar merda, mas nessas situações, independe do não formal, daria, todavia.

Bom, se uma Universidade toma as rédeas da transmissão de pesquisas acadêmicas para o grande público, inevitavelmente você desmonta esteriótipos errados. Imaginemos essa situação ideal aqui no Brasil: Se houvesse, digamos, no Museu do Ipiranga, um evento cujo tema fosse a proclamação da Independência, com gente vestida como alguém do início do século XIX, mas com um ator fazendo Dom Pedro em cima de um burro de carga voltando de Santos, o ilustre e equivocado (mas belíssimo, pra sermos justos) quadro de Pedro Américo poderia ser, finalmente, encarado como uma interpretação romântica do grito e não como um quase-retrato, como alguns o enxergam.

Um evento desses seria algo visualmente fantástico para um público leigo que, “por osmose”, acabaria entrando no clima e inevitavelmente aprenderia algo sobre a história de nosso país. Com uma “tradicionalização” desse ato, digamos, todos os dias 7 de Setembro, viraria uma espécie de evento turístico que acabaria gerando mais interesse do povo como um todo por história, que levaria à leitura, à uma maior acumulação de conhecimento, que geraria mais senso crítico e blablabla...

Não digo que o reenactment é a solução da humanidade, óbvio que não, mas pode ser usado como um passo para uma valorização da cultura, sem demagogias politiqueiras ou valorização de determinados aspectos através da desvalorização de outros (como certas políticas nacionais que nos rodeiam atualmente).

No exterior isso ocorre. Os “Open-air museums” são presentes em diversos lugares na Europa. A encenação da batalha de Hastings é um evento aguardado por milhares de reenactors todos os anos. Mesmo museus “tradicionais” às vezes apresentam réplicas de peças de época (que por sua vez são, também, recriação histórica) que podem ser seguradas ou vestidas pelo público, geralmente para que tirem fotos, mas que os fazem ver como seria o original e tocar algo muito próximo.

Além disso, é muito mais interessante e divertido você aprender alguma coisa num museu através de atividades do que lendo placas e textos de parede. Esses são indispensáveis, claro, mas se você ficar curioso, provavelmente vai ler com mais vontade e aí se lembrará dele por mais tempo.

Para crianças (o clichê de “futuro da nação” é cai bem nesse momento) é ainda mais divertido, porque ao invés de ver um manequim, frio e estático dentro de uma vitrine, ela veria, por exemplo, um ferreiro martelando uma ferradura numa forja a carvão. Ouviria, sentiria o calor. Essa experiência dificilmente seria apagada da mente dela e mesmo que ela fosse trabalhar com TI, com certeza haveria um maior respeito por essa ou qualquer outra área menos “avançada tecnologicamente”, graças a alguma lembrança agradável (torcendo pra criança não enfiar a mão na brasa, claro, já que seu sentimento acabaria se invertendo...)..

E o que isso tem a ver com universidades em si? Bom, a maioria dos museus do mundo, independente da área de pesquisa, são administrados por universidades. O próprio Museu do Ipiranga é da USP.

É muito mais barato prum museu (e, portanto pra Universidade que o mantém) convidar recriacionistas para esses eventos e demonstrações do que treinar funcionários, contratar atores ou mesmo contratar profisionais especializados nessas áreas. O reenactor, assim, ganha uma boa área de atuação e um reconhecimento social como um agente formador e não apenas um excêntrico desajustado.

Apesar de eu, por exemplo, trabalhar como cuteleiro e gostar das tais dark ages, adoraria me vestir como um ferreiro colonial do século XVIII e mostrar pras pessoas como era a confecção de ferrarias de campanha (supondo que eu as soubesse fazer, claro. E eu com certeza não cobraria nada por isso se tivesse esse espaço. Claro, se uma instituição dissesse “preciso de você para tal dia”, a coisa muda de figura, mas se fosse um evento para recriacionistas, com um cronograma livre e tal, eu não estaria lá “à trabalho”, mas sim “por lazer”. E acredito que a maioria dos recriacionistas envolvidos com algum tipo de produção relacionada ao período que recria pensa da mesma forma.

Para o recriacionismo em si, por outro lado, acaba surgindo uma responsabilidade saudável. Se um museu tenta retratar um período, automaticamente ele irá tentar convidar os reenactors que tenham qualidade para tal e não qualquer um. Dessa maneira, irá chegar naqueles que conheçam o período através do estudo. O próprio museu, dessa maneira, pode disponibilizar suas pesquisas e acervo para enriquecer essa recriação, melhorando a qualidade da prática para não “sujar sua imagem”.

Assim surge uma interdependência: a instituição precisa de BONS recriacionistas e o recriacionista precisa de BOAS pesquisas (criadas principalmente por pesquisadores de universidades). Ambos saem ganhando, ainda que não haja um compromisso fixo de exclusividade em nenhuma parte.

E o público sai ganhando em dobro: aprende, interage, se diverte e consegue, diferente do conhecer ou entender, compreender por um momento um período deixado para trás no tempo.


Até a próxima semana.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A luta no recriacionismo histórico

Boa noite!

O assunto de hoje é um piso no calo de muita gente, embora infelizmente acho que os assuntos anteriores também são.

A postagem poderia ser resumida em "lutas, não necessariamente, são recriacionismo".

Explicando os motivos que me levaram a escrever isso:

Vejo algumas pessoas confundindo apresentações de batalha com recriação histórica. Vejo algumas pessoas chamando Battle of Nations de recriação histórica. Vejo algumas pessoas chamando batalha campal de recriação histórica e por aí vai a lista. Não, não necessariamente essas coisas tem qualquer ligação com a recriação histórica.

UFC não é recriação histórica e não há nenhuma dúvida quanto a isso, tal como o campeonato mundial de luta greco-romana também não o é, mesmo sabendo que as pessoas praticam wrestling desde que os primeiros animais descobriram que dá pra "prensar" o outro na parede. Se fosse assim, o simples fato de falar qualquer outra língua seria uma espécie de reenactment.

Pois bem, dentro desse "mundinho colorido" do reenactment, é comum voltarmos nossas atenções ao aspecto bélico das culturas do passado. Não porque sem elas não faríamos recriacionismo, mas porque é, simplesmente, divertido. Ao ir pra um festival como o Woling, Hastings ou Foteviken, lutar é a atividade mais "popular". No sentido de ser democrático mesmo: qualquer um pode chegar lá com o devido preparo prévio, pegar uma espada e bater nos amigos, sabendo que não vai morrer com isso e que vai extravasar pelo menos um pouco.

No entanto, esse "live steel", que é um nome comum dado à prática de lutar com armas de aço, não é próprio da recriação histórica. É apenas mais uma prática absorvida pelos recriacionistas. E também não é o mesmo que o HEMA, Stage Combat ou a batalha campal popular no Brasil, ou como o SCA.

Pra explicar um pouco, vou resumir (injustamente, pois o espaço é curtíssimo) essas práticas.

Live steel/buhurt: Imagine alguns caras com armas de aço, se batendo tendo algumas regras como parâmetro. Há uma certa necessidade de preparo físico, mas não tanto domínio de técnicas. Não é uma arte marcial, mas o resultado de uma vontade de se atacar com espadas e machados. O Battle of Nations (um sonho meu, assumo) não deixa de ser, em boa parte, um Live Steel. Nos EUA é até chamado de "Combate com Armadura" esse tipo de esporte. Veja bem, esporte não é arte marcial ou vice versa, mas muitas vezes um comporta características do outro. Apesar disso, algumas equipes do BoN não são apenas praticantes de Live Steel, mas sim de HEMA. E apesar de o Battle of the Nations ter sim um evento de reenactment em paralelo, o foco do evento é o campeonato mundial de combate com armaduras.

HEMA: Historical European Martial Arts. É exatamente o que o nome sugere. Assim como o Kendo está para o Kenjutsu e a Esgrima Olímpica está para a Esgrima Clássica, o Live Steel pode estar para a HEMA. Digo "pode estar" pois o Live Steel, como já disse, nem sempre envolve técnicas avançadas, é mais uma brincadeira que um esporte na maior parte dos casos, mas às vezes é encarado de forma bem esportiva, com regras claras e movimentos extraídos de grandes mestres. HEMA, porém, é uma arte marcial de fato. Ou melhor, várias artes marciais, construídas e reconstruídas através da leitura e estudo de manuais medievais e renascentistas e praticadas com seriedade em muitos países. Claro que em suas competições ela é tratada como um esporte, mas há muito mais nela, como em toda arte marcial: há filosofia, preparo físico, estudo e por aí vai. Por si só é uma recriação histórica, na mesma proporção que os mais tradicionalistas dojos de karate fazem, mas a vontade não é ilustrar um período e sim compreender um pequeno aspecto dele. Não importa como as armas eram feitas se elas não tiverem a qualidade. Não importa as roupas se elas não possuem o conforto e a resistência de hoje e por aí vai. É uma prática que se volta para si própria e para os praticantes e não para um público, ainda que tudo seja divulgado, entendem?

Stage Combat: Teatro, pura e simplesmente. Lutas ensaiadas ou, pelo menos, com pouca improvisação. O que importa é um "bom show". Obviamente, para um bom show deve haver verosimilhança e para tal, bons coreógrafos vão estudar os movimentos de bons lutadores. O principal atrativo do Stage Combat é que ele é realmente mais emocionante que uma luta "de verdade". Combates reais tendem a ser rápidos ou muito parados (paradoxo facilmente observável numa luta), enquanto no Stage há dramaticidade, enredo e tudo o que o teatro pode fazer. No Brasil temos um bom grupo que apresenta Stage Combat ao mesmo tempo em que estuda Esgrima Clássica Renascentista (que não deixa de ser uma forma de HEMA), a Frater Pendragon. Um exemplo internacional são os tchecos do Merlet com apresentações realmente de tirar o fôlego.

Batalha Campal/SCA: O SCA (Society for Criative Anachronism) e a Batalha Campal possuem preceitos similares, portanto falarei de ambos no mesmo parágrafo: divertir os competidores, proporcionar uma experiência mais ou menos segura, estimular o imaginário. Ambos usam armas "de mentira", geralmente de espuma, vinil ou coisas similares. A idéia é fazer uma espécie de jogo, com acumulação de pontos, vencedores e perdedores. Se você acerta alguém, ganha pontos. Se acerta um certo número de vezes, o outro "morre" e saí da brincadeira até a próxima rodada. Nesse ponto, bastante similar com alguns live steel. A diferença é mesmo nos equipamentos usados, já que os custos são bem menores e as armas são menos perigosas. Por uma questão estética costuma ser deixada de fora do reenactment e independente do peso e formato de suas armas, é literalmente impossível usá-las como se fossem armas reais, impossibilitando, também, um entendimento dessas últimas através dessas reproduções. Mas, e tudo tem um mas, é uma coisa divertida se você não cair em alguns mitos que alguns maus praticantes criam pra se legitimar (como "armas com o mesmo balanço que a real", "prática similar à da esgrima histórica" e blablabla, ainda que conceitos de estratégia sejam, muitas vezes, reproduzíveis na Batalha Campal).

Tendo essas "modalidades" em mente, o que o reenactor deveria escolher? Muita gente responderia "HEMA" ou "live steel". A batalha campal pode ser aproveitada. Como você, mãe, pai, irmão mais velho preocupado vai permitir que seu filho de, digamos, 7 anos de idade pegue uma espada de aço, ainda que cega, pra bater noutra pessoa? Em casa é uma coisa, mas envolvendo gente desconhecida a coisa muda. Não que eu ache que BC seja para crianças, mas é o exemplo mais claro que penso no momento. É uma brincadeira de longe mais segura e mais barata e cumpre seu papel de estimular o imaginário e a vontade de, um dia, ir pra uma prática mais perigosa e abrangente. Dentro do recriacionismo histórico, é algo muito pouco aproveitado, mas com um potencial significativo se souberem usá-la.

Pra quem tem mais disciplina e tempo, a HEMA é uma boa escolha, ainda que exija muito de seus praticantes. Não dá pra decorar o nome de Lichtenauer e falar que ele tem qualquer material sobre escudo grande redondo, como já ouvi gente dizendo por aí pra dizer "treino luta viking". Ou ainda dizer que pratica uma arte marcial milenar cujo nome é o nome de uma academia alemã qualquer, só porque era o nome do vídeo no youtube. HEMA exige tempo de leitura e estudo, ou prática em alguma academia (que inexiste no Brasil). Mas nossa terra é cheia de especialistas em genética que não sabem o que é uma célula...

Live Steel é, de longe o mais fácil, embora não mais barato, a se fazer. Contextualizando bem, é a forma mais convincente e reveladora sobre quase qualquer período da história (ou você acha que, tirando aquela elite militar reduzida, muitas outras pessoas sabiam empunhar uma arma que não fosse uma ferramenta?). De qualquer forma, como disse, luta não é necessário, então se a vontade é se divertir com a luta enquanto leva o resto a sério, não há a menor obrigação de se tornar um artista marcial. Pra isso o Live Steel acaba sendo mais importante que uma prática estudada como a HEMA.

Quanto ao Stage Combat, bem, o reenactment envolve uma bela parcela de teatralidade. Pra certos públicos, um show fight é muito mais interessante que uma demonstração de mestria marcial. Além disso, evita alguns problema no caso de um resultado já determinado, como a recriação de algum duelo histórico conhecido onde você não quer acertar a cabeça do seu oponente e ele continuar de pé porque ele é quem te mata. O problema é que exige um bom tempo de ensaio e é praticamente impossível em combates de massa.

Bom, tendo tudo isso em mente... Qual o sentido de um perneta, por exemplo, lutar? Seria algo insalubre pra todos que estivessem na mesma luta. Isso quer dizer que o perneta não pode ser um reenactor? De modo algum.

A luta, tal como qualquer atividade, é apenas uma faceta do recriacionismo histórico. É uma faceta que chama muita atenção, de fato, mas que não é a mais importante que qualquer outra. E não há nenhum sentido em se esforçar para ser um bom reenactor e utilizar elmos e espadas importados com tênis nike. No máximo, você está mostrando uma luta e não um período e se é só para tal, não precisa de todo o resto da indumentária.

Em muitos países esse é um mal que já foi sanado com o tempo. Aqui, como somos pouco mais que um embrião, ainda vai algum tempo, mas até que estamos caminhando rápido (agradeçamos à internet, que não era presente nos anos 80 na Europa).

Por hora é isso.
Até semana que vem!

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Purismo: Revendo esse conceito.

Boa noite!

Semana passada eu cheguei a comentar sobre réplicas e eu também queria voltar ao tópico da autenticidade. Desculpem se eu parecer tautológico.

Certa vez recebi uma certa crítica por fundamentar o meu grupo, o Escudo dos Vales, em conceitos "muito puristas". Vendo pelo lado de um brasileiro tentando fazer alguma coisa voltada ao medievo no nosso país, esse argumento faz bastante sentido.

Querendo ou não, nossa visão de Idade Média é um esteriótipo de barbárie e regresso da humanidade que perdurou durante mil anos. Independente de alguém pensar num merovíngio do século V ou num cavaleiro templário do XIII ou mesmo num torneio de justas do século XV, tudo é "cultura medieval" (um termo por si só um bocado babaca). E as pessoas aqui tem a visão de que todas essas coisas aconteciam ao mesmo tempo. É meio estranho se pensar que há meros duzentos anos não havia nem energia elétrica sendo usada pelo homem e cá estou eu, digitando num computador, enquanto aqueles pobres sujeitos ficaram estagnados durante mil anos...

Eu poderia voltar no post sobre o recorte específico e dizer tudo aquilo de novo, mas não é a idéia desse tópico.

O que a maioria esmagadora dos recriacionistas mundo a fora fazem é uma aproxmação, digamos, grosseira da realidade. Por mais pesquisa que haja, por mais rigor e parâmetros que escolhamos seguir, nós prestamos atenção em outros detalhes, como custo, segurança, viabilidade técnica e tudo o mais.

Uma espada 100% autêntica, pra começar, deveria ser afiada e em muitos casos de um aço não muito confiável, dependendo do período recriado. Só sair com ela na rua já geraria problemas, desembainhá-la seria pior e eu nem entro no mérito de usá-la, por motivos óbvios.

Um escudo quebraria rápido de mais e o gasto para repô-lo seria insustentável. Uma cota de malha feita com argolas rebitadas exigiria meses de trabalho contínuo e nosso tempo não permite isso. Fazer aço em casa à partir de minério exigiria um suprimento considerável de carvão e um espaço invejável - e sem vizinhos - ... E só pra colocar a cereja no bolo, metais preciosos são ainda mais preciosos nos dias de hoje.

Falando por fim das réplicas, há recriacionistas mais abastados que só utilizam estas. Há uma certa "corrente" entre os reenactors que opta por isso. Afinal, utilizando réplicas de um determinado lugar e tempo, simplesmente elimina-se muito do falatório. O que poderia ser mais autêntico que um "set" inteiramente recriado dos equipamentos do barco funerário de Sutton Hoo para um "rei/chefe saxão do século VII" além dos próprios artefatos restaurados?

Há algumas pessoas engajadas na produção de réplicas fiéis ou com poucas modificações (mais no tocante a matéria prima empregada) e estes ganham cada vem mais destaque no mercado do recriacionismo "de luxo", principalmente na Europa. O motivo é que além de preços altos que geram certa exclusividade, há o fator da qualidade: um cara que tem acesso aos originais em museus e tem um público que paga bem, obviamente tem mais tempo para estudar suas peças mais a fundo e fazer trabalhos cada vez melhores. Suas peças se tornam objeto de desejo entre colecionadores e mesmo instituições que enxergam no reenactment um meio de promover suas atividades (como museus, universidades, etc...)

Apesar de necessária para uma "legitimação" do reenactment como prática educativa e séria, obviamente não há a necessidade de que todos os reenactors ajam desta forma, se apegando a réplicas 100% fieis às originais.

Ou seja, num geral a recriação da maioria das pessoas não tem nada de purismo, se formos analisar essas pessoas de grana que utilizam peças folheadas a prata e ouro, espadas com pattern-welding/bloom steel (quando não um pattern-welding COM bloom steel), detalhes em osso de baleia e tudo o mais.

Acontece que sempre há outro lado...

Dizer isso tudo pode parecer um incentivo ao uso incorreto de materiais e coisa e tal. Por isso volto aos posts anteriores sobre recorte e autenticidade ou mesmo o último post, sobre os insumos disponíveis aos recriacionistas.

Para sintetizá-los: a pesquisa é altamente necessária para evitar anacronismos, mesmo que se invente algo que nunca existiu de fato.

Para ilustrar o parágrafo anterior da forma que acho mais clara no momento, volto a pensar num futuro reenactment de nossa era: pense em alguém querendo "construir" um carro típico dos últimos anos do século XX. Através das evidências ele vai saber o tipo de tecnologia e configurações usadas na mecânica, o design arredondado convencional e algumas marcas. Com isso ele poderia criar um Peugeot com um motor Volks (pois isso passaria desapercebido para a grande maioria de nossos contemporâneos), mas com o tradicional aspecto "felino" dos carros da Peugeot, ainda que inventado. Ele poderia colocar o estofamento com pele de jacaré se quisesse, pois sabe que isso é bastante customizável, com painel de plástico, ponteiros analógicos, cinco marchas e tudo o mais. Caso, hoje, víssemos tal carro, ele não nos pareceria estranho em nada. Isso é ser conjectural, mas autêntico.

Se o mesmo recriacionista criasse um carro com a mesma aparência felina com um emblema da jeep, nós estranharíamos. Mais ainda se o motor fosse um V8 num carro de aspecto popular. E se além disso tivesse traços quadrados e redondos ao mesmo tempo, nós veríamos um carro sem a harmonia típica deste período. Este recriacionista seria, portanto, um cara sem estudo profundo desse nosso tempo.

Um purista de fato, no entanto, iria pegar o Peugeot pronto, customizar o possível (como o estofamento interno, a cor, as calotas, insulfilm...) e deixaria toda a estrutura idêntica à de um original, embora talvez mudasse alguns tamanhos e proporções que, para nós, pareceria normal.

A diferença entre o segundo exemplo e os outros é óbvia, pois é alguém sem estudo e sem conhecimento que simplesmente cria o que lhe dá na teia parcamente baseado no período em questão. A diferença do primeiro para o terceiro é de que o primeiro, muitas vezes, precisa de uma base teórica bem maior do que a do último, uma vez que deve saber exatamente o porquê de cada detalhe de uma porrada de originais para criar um objeto inteiramente novo que pareça verossímil, enquanto o outro pode se permitir se focar e se especializar num único modelo e ninguém poderá dizer que ele não é autêntico.

Cada um tem vantagens e desvantagens: O carro inventado, infelizmente, nunca pertenceu ao nosso tempo, enquanto o carro refeito tende a criar uma padronização entre todos os "reenactors do futuro", coisa que não é algo que realmente existe em nosso tempo (digo todos tendo um Peugeot na garagem).

Logo, os dois são lados de uma mesma moeda. Todo o post pra ilustrar que o estudo do aficcionado é o que dá a liberdade ao recriacionista para inventar dentro de uma gama enorme de possibilidades e a única chance de realmente "entrar" na "mentalidade" da época, sentir o tal do zeitgeist, enquanto a replicação é a chave para alcançarmos uma aproximação maior com uma especificidade única e 99% segura dentro de um todo bem mais amplo. Uma se faz necessária da outra.

Enquanto isso o desconhecimento e desinformação devem ser deixados de lado, pois eles não nos aproximam do passado, apenas reforçam os esteriótipos, que geralmente são equivocados. Como a velha história de espadas de 10kg, vikings usando machados de duas lâminas, martelos de guerra como aqueles de jogos de RPG... E por aí vai...

Até a próxima semana.